sábado, 22 de janeiro de 2011

Bastin


Manassés de Lacerda, Reinaldo Varela, Luís Petroline, Júlia Florista, Roberto Catão, José Bastos, Isabel Costa, Almeida Cruz, Eduardo de Souza, Rodrigues Vieira, Delfina Victor, Maria Vitória. Nomes de velhas glórias do fado inscritas na memória popular, sobre a maioria das quais não havia sequer certeza de que alguma vez tivessem gravado a sua arte. O único testemunho documental dessa importante parcela da história cultural portuguesa encontra-se em Inglaterra, entre o espólio de oito mil registos em discos de 78 rpm que o coleccionador Bruce Bastin acumulou ao longo das últimas três décadas. Um acervo dedicado ao fado, mas onde se guarda também algum repertório de revista, de outras formas de música popular tradicional e até encenações históricas - como uma gravação do texto da proclamação da República. Os títulos mais antigos remontam a 1903 e esta é unanimemente considerada a mais valiosa e importante coleccção de fado do mundo.

Um número significativo dos registos em posse de Bastin representam as únicas cópias conhecidas de algumas gravações e só se soube da sua existência através da sua colecção. De algumas delas, o coleccionador inglês guarda até mais que um exemplar.

"É uma colecção deslumbrante que permite reconstituir uma importante parte da nossa história cultural", explica Rui Vieira Nery. "Com ela vamos finalmente conseguir aferir com certeza a evolução do fado que fados se cantavam no século XIX ou nas décadas de 10 e de 20, período de grandes transformações sociais e culturais? Que tipo de formas musicais e poéticas se usavam?"

O espólio encontra-se rigorosamente organizado e catalogado, como de resto foi testemunhado pela primeira delegação enviada a Inglaterra em Novembro de 2001 pelo então ministro da Cultura, Augusto Santos Silva. No parecer resultante dessa primeira visita, Joaquim Pais de Brito, director do Museu Nacional de Etnologia dava testemunho da "importância única deste acervo". Em 2003, uma segunda delegação liderada por elementos da Egeac - empresa da Câmara Municipal de Lisboa que gere a Casa do Fado - aconselhou a compra do espólio, então constituído por cinco mil discos de 78 rpm. Nessa altura, a Casa do Fado possuía apenas 50 registos deste tipo.

Coleccionador compulsivo de discos desde a juventude, Bastin detém começou a perseguir registos de música portuguesa rara na década de 70. Em Inglaterra, nos Estados Unidos e um pouco por toda a parte, onde quer que o circuito dos coleccionadores o levasse. Mas também em Portugal. Em 1990 garimpou uma importante parte do seu espólio num velho armazém do Porto. Centenas de discos postos de parte há anos, desde que novos equipamentos os deixaram de ler. Abandonados por quem não lhes percebia o valor. Bruce Bastin percebeu.

J.P.O., DN, 05/08/2005

Bruce Bastin, 67 anos, é um coleccionador puro. Desde a primeira proposta de aquisição do espólio pelo Estado português, elaborada em 2001 por José Moças, a história fez-se de avanços e recúos, correspondência sem resposta e muita indefinição das entidades portuguesas. Mas Bastin manteve firme a intenção de vender a Portugal, mesmo tendo o interesse de compradores americanos. Porque o lugar do fado, diria, é em casa.

O inglês pediu 1,1 milhões de euros para se desfazer do espólio, preço "muito abaixo do real valor de mercado", assegura Rui Vieira Nery - "algumas destas peças leiloadas no eBay podem valer quase isso". Mas isso foi quando o acervo se fazia de cinco mil registos. Desde então Bastin continuou a somar peças e reuniu três mil registos ao espólio, a maioria achados por José Moças no Brasil. E no entanto, o preço mantém-se, num gesto que todos os actores ouvidos pelo DN - sem excepção - têm por admirável.

O inglês tinha fixado 31 de Julho como data limite para fechar o negócio, porque era é dia de encerramento do ano fiscal em Inglaterra e Bastin quer vender a sua empresa - a editora Interstate Music -, na qual inscreveu o património das suas colecções - no plural, porque a de fado é apenas uma e nem de perto a maior. Nas suas mãos, Bastin tinha, entre outras, a maior colecção de blues/ragtime do mundo, prontamente adquirida por entidades norte-americanas assim que se soube da sua disponibilidade. "Felizmente", nota José Alberto Sardinha, "não estamos perante alguém que precisa de dinheiro. Apenas um homem com quase setenta anos que decidiu retirar-se."

J.P.O., DN, 05/08/2005

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